2 de ago. de 2011

Ditado

Fazendo um balanço rápido do que houve de bom em 2011 até agora para a música brasileira, é impossível deixar passar batidos dois nomes: Criolo e Rômulo Fróes. Algumas características os unem: ambos são de São Paulo, refletem bastante sobre a cena que os cerca, passaram um tempo razoável como quase anônimos até chamar a atenção da mídia e, por fim, mas não menos importante, utilizam o samba como um dos veículos principais para suas composições. Entretanto, o fazem de maneira diferente: enquanto Criolo - de quem já falei neste espaço antes - se apropria de uma linguagem que é de sua origem, e a soma com outros modos de cantar (como o rap), Rômulo Fróes canta sambas como quem até invadisse essa linguagem. Colocando-se como um estudioso - "Não sou sambista, mas lido com o samba porque afinal sou um compositor de música brasileira e tenho esse direito", disse ele ao Alto-Falante -, o cantor não pode deixar de lado o ritmo dos tambores. Mesmo que deixe o samba mais concreto e mais torto, Fróes o faz de maneira exemplar ao longo das 14 canções que compõe seu mais recente trabalho, Um Labirinto em Cada Pé.

Logo de cara, fica evidente o diálogo - e o conflito - entre a tradição e a renovação do gênero: "Olhos da Cara", cantada à capella por Dona Inah, é nada mais que um lamento negro vindo do fundo da alma, como a obra de Nelson Cavaquinho e Cartola - ambos claras influências de Rômulo. Entretanto, se for para indicar os genes do paulistano, é possível colocá-lo numa linha evolutiva que vem de Jards Macalé e Luiz Melodia, passando pelos transambas de Caetano Veloso, pela turma da Lira Paulistana - em especial, a poesia de Itamar Assumpção e a pesquisa musical do Rumo - até desembocar em algo que Arnaldo Antunes se dedicou a fazer recentemente. O titã, por sinal, participa da instigante "Rap em Latim", que mistura samba de breque com as rimas do rap, em uma letra que fala sobre sexo e sobre a vida de um artista.

Ainda no espectro das influências que circundam Um Labirinto em Cada Pé, três diferentes campos se mostram importantes. O primeiro é a convivência de Fróes com os artistas plásticos Nuno Ramos e Clima - todas as faixas de Labirinto são composições de um ou do outro, em parceria com Rômulo ou não. (Para quem não se lembra, Ramos envolveu-se em uma polêmica na última Bienal de São Paulo com sua obra "Bandeira Branca", que mantinha três urubus em um viveiro no vão central do prédio que abrigava a mostra). Tal fato traz à tona, além da própria vivência do artista, a capacidade de transformar as letras cantadas no álbum em perfeitos paineis visuais, com uma força imagética que há tempos não se via na música brasileira. É o que acontece, por exemplo, nos versos rápidos de "Ditado", que se desdobram geometricamente: "A vida às vezes tem um lado/A vida às vezes têm dois lados/A vida até têm três ou quatro/Às vezes fica até quadrada(...)/A vida é círculo e é elipse/Quando tem sol, ela é eclipse".

As referências à Bíblia também são um ponto chave do disco - aparecem aqui menções ao Apocalipse ("tá certo e perto agora eu ouço a trombeta/a nova era dessa gente careta/feito luz ou farol", em "Rap em Latim"), e a Mestre Jonas ("A chuva esconde um céu de estrelas e Jonas/dentro da baleia acende um sol, sua fogueira", em "Ditado"), sem falar na estranha - e bonita - crônica musicada "O Filho de Deus", que sugere um Messias mendigo em pleno Rio de Janeiro, cuja redenção acontece ao voar sobre a Guanabara. "Quem voa de volta é o filho de Deus", canta Rômulo. Além disso, é importante ressaltar o diálogo com a música popular: além do verso "só faço samba", em "Muro" - cujo contexto original da composição de Tom Jobim acaba por caber bem para discutir a pecha de sambista que tentaram colar em Rômulo - há também "Jardineira", que remete à marchinha de mesmo nome de Benedito Lacerda e Humberto Porto. (É, aquela da "jardineira/por que estás tão triste?").

Entretanto, não há como negar que este é um disco de samba. Ainda que ele soe por vias tortas, na maioria das vezes, é difícil dissociar as canções de Labirinto do ritmo - algo que é possível sentir até na formação da banda que acompanha o cantor. Antes ela era formada por Guilherme Held na guitarra, Marcelo Cabral no baixo e Pedro Ito na bateria. Agora o apoio de Rômulo conta também com Rodrigo Campos no violão e cavaquinho e Thiago França no saxofone. Aliás, uma nota em especial deve ser feita sobre Held: em muitas canções, sua guitarra é um charme à parte, criando climas ou fazendo solos espetaculosos, lembrando - e muito - o trabalho de Lanny Gordin, em discos como os de Macalé ou o "Fa-Tal", de Gal Costa.

Conhecido talvez até mais por suas entrevistas polêmicas - vale ler o longo e completo texto do Scream & Yell - do que por sua música, Rômulo disse recentemente que já deu tempo o suficiente para entendermos a indústria da música hoje e que é necessário voltar a se falar da música em si, e fazer canções e mais canções. Nessa direção, Um Labirinto em Cada Pé é um disco satisfatório no que tange a esse objetivo - "Ditado", "Rap em Latim", "Muro", "O Filho de Deus" e "Máquina de Fumaça", pra citar apenas cinco, são canções que merecem destaque na já prestigiada carreira do paulistano. Entretanto, como disco, ele acaba por soar um tanto quanto repetitivo por sua extensão, e por sua dificuldade de absorção: as letras do álbum contêm tanta informação que o impacto de ouvi-las em 45 minutos acaba por atordoar o ouvinte. Menos seria mais, nesse caso. Mas, ao final, o que fica é um desejo para que o ditado de Rômulo ("eu peço música e faço música e digo música e canto música/mas estou calado") não se concretize.

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